- Esse é apenas um sonho seu, pigmeu. – Por mais que tivesse se permitido responder ao loiro com um rosnado divertido – e sem mover um músculo sequer após receber o soco no ombro -, a guerreira tinha sua atenção dividida em vários campos. Primeiro, percebeu muito bem que sua presença ali havia deixado seu irmão mais que alerta, provavelmente ciente da tentativa da mulher em amenizar a situação do que ocorria tão próximo ao seu povo. Órion não gostava de admitir, mas a situação era, de certa forma, assustadora, e, a tal ponto, que praticamente correra todo o caminho até ali, quando normalmente faria questão de levar o próprio tempo para fazer qualquer coisa. Heike também havia percebido, e pensou se deveria dizer qualquer coisa para poder diminuir os possíveis questionamentos que perpassavam sua cabeça, mas decidiu que era melhor esperar. Explicaria apenas uma vez, e para todos os que tivessem que ouvi-la.
Outra parte de sua atenção estava focada em reconectá-la com Pwairu, enquanto caminhava lado-a-lado com os três guerreiros residentes daquele local. O menor dentre eles ainda a intrigava, a energia que residia no virginiano lhe arrepiando os pelos do corpo, enquanto praticamente a envolvia tamanho poder. Pwairu não lhe respondia, porém, por mais que fizesse questão de perguntar, como se a entidade não soubesse exatamente o que lhe dizer. Aquilo era frustrante, e sua expressão se torceu em desagrado. A irritação se mostrando na forma como começara a pisar mais duramente no chão gélido.
E havia aquilo também. Estava desconfortável com a temperatura do ambiente. Muito frio. Muito mais do que deveria ser normal, e muito mais evidente graças às roupas que utilizava. Com um suspiro pesado, teve que abrir sua própria bagagem e retirar a capa felpuda que utilizava em rituais para cobrir seus ombros desnudos. Poupava-lhe um pouco do gelado, mas ainda não era suficiente, e, por isso, não pensou duas vezes antes de puxar Heike para mais perto, a cara fechada servindo como explicação suficiente – ao menos imaginava.
Fizeram uma parada e mais uma pessoa adentrou ao grupo. Não precisou questionar quem ela era, por mais que não conhecesse as nomenclaturas do local. Nero havia comentado que era líder entre os regentes junto ao virgem, mas que havia outra cabeça que liderava pessoas ainda mais importantes naquele meio, e que era superior a si. Pela aura de liderança, mesmo que mesclada com uma serenidade que, talvez, fosse estranho para alguém que lidava com tantos guerreiros poderosos, apostava que aquele era o tal líder citado pelo taurino. Porém, não se incomodou em analisá-lo naquele instante, apenas o cumprimentou, quando apresentados, e seguiu em uma pseudo indiferença àquela presença. Pelo visto, teria que se acostumar com energias tão absurdamente fortes e marcantes, algo não tão comum em sua rotina.
Ao chegar à sala onde a reunião iria ocorrer, a guerreira cortou caminho para o local onde menos batia ar condicionado, e apoiou-se contra a parede, os braços cruzados diante do peito. Uma cadeira fora oferecida a si, porém se recusou a sentar de imediato. Era um local estranho, com pessoas poderosas, em uma configuração que, por mais que soubesse que seu irmão participava, não poderia considerar totalmente segura para si. Precisava compreendê-lo antes de permitir-se relaxar.
Em silêncio, acompanhou a chegada dos Sabaoth. O primeiro tinha uma grande presença. Uma que logo reconheceu semelhante à própria, mesmo que em uma anatomia muito maior que a própria, e isso despertou seu interesse. Principalmente, quando notou que era alvo da atenção alheia, algo que quase lhe cortou os lábios em um sorriso convencido, mas que deixou de lado para notar mais alguém adentrar o local. Mais uma pessoa curiosa com sua presença, e a qual quase a fez rir, graças ao comentário bastante oportuno. Era verdade, a coisa parecia séria, muito mais do que gostaria, na verdade.
No entanto, não demorou para que erguesse a cabeça e a movesse na direção do outro que se juntava ao grupo, indiferente ao fato de não conseguir enxergar o mundo físico com o único olho que mantinha aberto, e, também, à atenção que poderia chamar graças ao seu gesto repentino. Porém, não conseguiu se conter ao notar a dualidade naquela aura. Uma energia suja, que pingava malícia parecia ocupar o corpo daquele que se acomodava na mesa de reuniões, por mais que seus gestos parecessem inocentes o suficiente para não chamar atenção de mais ninguém. A guerreira mordeu o interior da própria bochecha, forçando-se a não cortar o caminho até o tal guerreiro e questionar o que era aquilo. Contudo, guardou a informação... Conversaria seriamente com Nero quando tivesse tempo para tal.
Porém, enquanto tentava se acalmar e focar na problemática que a trouxera ali, fora impedida por algo que realmente não esperava. Seu olho se arregalou, mas usou de toda sua determinação para segurar qualquer gesto que a entregasse... Menos a língua, já que permitiu um baixo xingamento em sua língua mãe escapar dos lábios cheios, ao mesmo que ouvia um baque próximo – a garrafa de Harold contra a mesa de reuniões. Aquele... Conseguia ouvi-lo, mas não conseguia ver qualquer coisa naquela presença. O que era estupidamente estranho. Nunca antes ouvira falar de um ser vivo sem aura, mas conseguia ouvir e sentir perfeitamente aquela pessoa, então era um ser vivo... Sem aura? Pwairu teria que ouvir suas reclamações após por não explicar todas aquelas possibilidades para si.
Entretanto, não demorou a sair daquele torpor, sentindo outra presença se aproximar, e quebrando toda sua análise para fazê-la sentir-se levemente desconfortável ao notar que causava desconforto ao mesmo. Órion não fazia o tipo simpática, não mesmo, mas permitiu-se menear a cabeça em um cumprimento breve ao notar novamente o olhar voltado à sua direção. Aquilo não daria certo se assustasse justamente as pessoas que a ajudariam.
Não se impressionou ao notar a irritação de Heike com a demora dos outros guerreiros, e, muito menos, se incomodou por Nero ter iniciado a reunião logo após, afinal, o melhor era jogar aquilo tudo para fora o mais rápido possível, para que a solução fosse alcançada tão rápido quanto. Por isso, descruzou os braços e se aproximou na mesa, sentando-se na cadeira outrora separada para si com uma maestria que quase escondia o fato de não enxergar realmente – algo impossível graças ao tom leitoso do único olho que ainda possuía. Não se preocupou em apresentar-se, uma vez que o taurino já havia feito aquilo para si, então foi direto ao assunto.
- Há algo de muito estranho acontecendo próximo de onde moro. – Começou, o sotaque forte marcando cada palavra – Não há muito tempo, estava fazendo a patrulha ao redor dos limites da tribo, quando senti uma energia corrompida. Tentei ignorar, já que era algo que não nos afetava diretamente e estava relativamente longe, porém parecia piorar a cada novo dia e ocupar muito mais espaço do que deveria. Pensei em ir ao local, averiguar o que estava acontecendo, mas Pwairu não permitiu... Pwairu é a entidade que rege o signo de touro e a deusa mãe de nossa tribo. Segundo ela, isso era algo que eu deveria compartilhar com vocês, que tem relação com a missão que precisam cumprir. E que eu precisava me mover logo, porque era um perigo para a tribo.
Respirando fundo, a xamã bateu os dedos levemente contra a mesa, um reflexo involuntário, enquanto pensava em como continuar o que desejava dizer, principalmente por aquela parte a desagradar demais. – Eu não pretendia ir contra aquela energia, de qualquer maneira. Senti que era muito mais forte do que eu, e que estava espalhada de uma maneira que não conseguiria conter. Quando pensei em averiguar, era apenas para ver até onde estava alcançando e se precisaríamos mover a tribo para mais distante. É estranho dizer isso, mas não conseguiria lidar com aquilo, não sozinha. É algo realmente distorcido e maligno... Tão forte que pode influenciar, e não quero meu povo à mercê disso. Eu preciso da ajuda de vocês, e pode ser algo que precisam lidar com, se Pwairu estiver certa... E ela normalmente está.