Seguiu o virginiano até a sala recomendada, sentindo-se levemente curioso só pelo fato de terem que mudar de local. Sabia o que aconteceria consigo durante os procedimentos, mas não tinha ideia de que tipo de máquina o aguardava. Talvez, por sempre andar com Zion e por ser o herdeiro de uma empresa pioneira em tecnologia, Harold nutria um intenso fascínio por assuntos como aquele. Mesmo que a máquina em questão, pudesse ser a responsável pela sua possível morte. Já na sala adequada, não conseguiu achar um resquício sequer de seu entusiasmo anterior quando viu aquele flash branco lhe invadir a vista. Em silêncio, claro, deixou apenas o reflexo falar, inconscientemente levando a mão ao o olho, com violência. O corpo cambaleou no mesmo instante, mas não o suficiente para que perdesse totalmente o equilíbrio. Virou-se de lado, como se aquilo fosse amenizar a enorme claridade do local, mas pelo menos, esperou sua vista se acostumar. Teve um olho perfurado, e sua fotofobia conseguia lhe provocar mais agonia do que aquilo. Chegava a ser cômico, mas talvez, porque o pegara realmente desprevinido. Embora locais extremamente claros fossem comuns na Ala Hospitalar.
Mantendo o foco, não serviria de atraso para o Virgem apenas porque era cegueta, então balançou a cabeça, permanecendo com o olho semi-cerrado e o cenho franzido. O humor de Harold não era instável como os regentes de fogo, muito menos sensível como os de água. Era um humor estabilizado no modo "ranzinza" que de vez em quando trabalhava no sarcasmo. Porém, quando coisas como aquelas aconteciam, todo o sarcasmo perdia a graça e só restava o típico Harold de cara fechada. Dispensava qualquer tipo de diálogo - exceto os REALMENTE indispensáveis - e propenso a ser um ogro ignorante com qualquer um, inclusive com Gaia, se ele incorporasse Rin naquele instante.
Deixou Rin com os preparativos, não iria conseguir observar nada daquela forma, mesmo. A lente de contato que usava não era como seus óculos, que filtravam parte da luz, o que amenizava e muito sua fotofobia. Tinha todas as funções, mas não teve tempo suficiente para configurar aquela função, então, sofreria calado. Talvez fosse conveniente um olho mecânico que pudesse privá-lo daquela irritação constante. Pensaria melhor naquilo depois. A ideia de estar se tornando, aos poucos, um ciborg, não lhe era desagradável também.
Porém, dispersando-se de qualquer pensamento paralelo, percebeu que aquele local parecia ter sido preparado especialmente para a sessão que aconteceria consigo. Aquela era a primeira vez que entrara naquele lugar, mas já sabia que entraria ali até começar a desprezar o local. Então já começava a desprezá-lo de antemão. Sentou-se na cadeira e achou um pouco de graça sobre o quão similar ela era à uma cadeira elétrica. Eu deveria dizer minhas últimas palavras? Zombou em pensamento, dando de ombros e permanecendo quieto, aguardando Rin lhe prender na cadeira. Imobilizado, quase literalmente, dos pés à cabeça, pensou se sentiria tanta vontade de se debater assim - como a estrutura do assento sugeria. Deveria começar a se perguntar se aquilo já havia sido testado em alguém, ou se estava servindo de cobaia? Hm... Não.
— Se eu conseguir falar depois disso tudo, sem problemas. — Sabia que não morreria. Era resistente e tinha noção daquilo. Mas é claro que sabia que não levantaria da cadeira, daria um tapinha nos ombros de Rin e se despediria até o dia seguinte, para a segunda sessão. Não estava tendo a terapia acompanhada pelo curandeiro mor só por consideração dele. Por sinal, seria tudo, menos consideração. Embora aquilo não o deixasse ansioso, muito menos nervoso.
Sua visão havia escurecido graças ao capacete e, de certa forma, aquilo o aliviou um pouco. Toda sua estrutura física adormeceu por completo assim que fora anestesiado, mas não sentia sono. Pelo contrário. Era como se seu corpo tivesse dormido para manter sua mente mais acordada ainda. Não escutava nada do ambiente exterior. Não escutava qualquer ação de Rin, nada. Estava fechado numa bolha mental escura e isolada do mundo externo. Um zunido vibrou em uma direção que não reconheceu. Ruídos distorcidos e intensos invadiram sua audição numa altura agonizante, que o forçou a conter a respiração por reação natural. Aquilo não o deixaria surdo, pois não eram seus tímpanos que estavam sendo afetados. Tudo era apenas captado diretamente pelo cérebro, sem danificar o restante dos órgãos. Da mesma forma, Rin não seria capaz de escutar do lado de fora.
Uma imagem pequena foi exibida no interior do capacete, dando a impressão de estar muito longe. De maneira repentina, a imagem aumentou e muita coisa não dava para ser definida de imediato. A resolução da imagem era péssima e se distorcia de maneira perturbadora em ritmo com o áudio. Entediado estava? Poderia estar. O psicológico de Harold permitiria que ele estivesse bocejando com aquilo tudo. Porém, começava a suar frio. A respiração se descompassava aos poucos e, mesmo anestesiado, os dedos das mãos se mexiam pouco, na tentativa de apertar o braço da cadeira como reflexo de inquietação. Os dedos dos pés se apertavam contra o chão e todo seu corpo se encontrava contraído, tenso. Queria saber porque estava reagindo à algo tão estúpido como imagens sem nexo e barulhos ensurdecedores aleatórios. Mas mesmo que a resposta fosse mais óbvia do que "2 + 2 = 4", ele não conseguia raciocinar. Não conseguia pensar em nada.
Os sons e imagens começaram a tomar forma reconhecíveis depois de alguns minutos. Nada nítido, mas seu subconsciente captou a mensagem. Gritos. De homens, mulheres, crianças, animais... Gritos de seres que Harold conhecia muito bem. Pensou que aquilo o relaxaria, mas foi o contrário. Cada parte de sua mente desejou, assim que entendeu o som pela primeira vez, que aquilo parasse. Seu orgulho queria achar graça naquilo, queria forçá-lo a rir, como naturalmente faria em outra ocasião. Mas algo irritante não o deixava se sentir assim e, dentre as imagens, reconheceu uma figura humana ao fundo, no meio de riscos e desfoques, além de um contraste perturbador de cores vivas e mortas. O vulto, deitado, porém visto de cima, se contorcia parecendo estar preso pelos pulsos e tornozelos. A imagem desaparecia e aparecia novamente, em tamanhos diferentes; ora mais perto, ora mais longe. Os ruídos e gritos se misturavam e pareciam uma coisa só. Os membros do vulto se retorceram para lados bizarros, mas não o impedindo de agonizar. Não foi preciso mais do que aquilo para fazer a mente do albino associar por si só, já que ele havia feito aquilo. Reconhecia aqueles movimentos, aqueles deslocamentos, todo aquele contorcionismo. Era um rapaz não muito mais velho que ele, que Harold torturou, destroncando seus membros, retorcendo-os até que a carne rasgasse e abrisse por si só. Retirara à força e manualmente toda a pele de seu rosto, lavando a carne exposta com uma garrafa de álcool qualquer. Lembrar dos nervos e dos músculos pulsando, o cheiro de sangue, as fraturas deixando os ossos expostos, os gemidos roucos de quem já não aguentava mais gritar...
Um impulso em seu corpo, que não vinha de si mesmo, deixou-o extremamente enjoado. A anestesia o paralisou, mas não o deixou imune a dores internas. Todo o seu corpo - até mesmo as próteses, já que continham nervos artificiais - latejou absurdamente em ondas de dor constantes. Sua cabeça não era excessão, mas parecia ser a fonte de tudo. Um desconforto que nunca sentiu na vida praticamente o obrigou a querer urrar o mais alto que pôde, mas a anestesia o impediu. A dor e a agonia, por incapacidade de serem extravasadas, acumularam-se e pareciam aumentar mais ainda por isso. Entreabria os lábios o pouco que conseguiu, respirando mais pela garganta do que pelo nariz. Sentiria o gosto salgado do sangue que escorreu de uma de suas narinas, se seu paladar não estivesse totalmente dormente.
As imagens foram se tornando levemente mais nítidas, e agora vinham em sequência, sem um nexo formado. Os gritos, hora ou outra, pareciam risadas, grunhidos. Suas entranhas se contraíram e vomitar sangue em suas próprias pernas não foi, de longe, o maior dos problemas. Porém, aquela reação pareceu despertar um pouco mais seus sentidos, dando-lhe a liberdade para grunhir. Há tempos já estava de olho fechado, mas por infernos, ainda via tudo nitidamente como se estivesse com os dois olhos enxergando perfeitamente. As próteses demoraram mais para respeitar seus comandos, mas foi de súbito quando os pulsos pressionaram para cima as barras de ferro que os prendiam. Se não estivesse anestesiado, sua força seria suficiente para arrebentar a estrutura da cadeira. Porém, com o nível de controle que estava, não conseguiria nem mesmo aguentar o próprio peso.
Mais sangue.
Os efeitos colaterais começaram em duas horas de tratamento - era este o tempo que Harold permanecia agonizando desde que Rin ligara o aparelho. As artérias do corpo albino estavam visíveis e o rapaz parecia mais pálido do que já era naturalmente. Seus ouvidos sangravam, seus olhos, as narinas e a boca. Sua cabeça parecia estar sendo pressurizada por dentro, tão potente era o efeito psicológico do tratamento. Mas, mesmo que os efeitos se concentrassem em sua cabeça, os sintomas que Harold sentia eram bem mais extensos. Duas horas pareciam ter sido dez e pela primeira vez em sua vida, o rapaz sentiu e reagiu à mais pura, plena e intensa dor e perturbação.
Porém, por estar sofrendo efeitos colaterais, o tratamento não especificava necessidade de interrupção da sessão em suas instruções. Era como se aquele revertério fosse necessário também, para o procedimento ser um sucesso. Harold era o torturado da vez e experimentava na própria pele todo tipo de dor que já provocara em alguém — sendo tudo isso relacionado sistematicamente pelos fios conectados em sua cabeça, ao seu instinto assassino. Medidas drásticas para situações drásticas, de fato.