[#03] Estudos

Era considerado normal Rin permanecer até altas horas da madrugada estudando o conteúdo das matérias de seu curso, numerosos e na maioria do tempo, extremamente complexos. Não possuía qualquer dificuldade com eles, porém era inevitável que tomasse seu tempo mais do que gostaria até que atingisse o nível de conhecimento que considerava apto. No entanto, a noite mal começara – para seus padrões – e nem latas de energético pareciam ajudar com o peso em suas pálpebras, insistindo para que dormisse mais cedo.  Contudo, não queria desistir de seu objetivo, e uma última saída se fez presente em sua mente cansada. Se estudasse com outra pessoa, provavelmente conseguiria se manter acordado, e a produtividade definitivamente aumentaria.

Havia apenas uma opção considerável, uma pessoa com quem tinha intimidade o suficiente – não para aparecer repentinamente em sua casa, teria a decência de mandar uma mensagem antes para caso fosse uma hora particularmente ruim – para visitar naquele horário, alguém que sabia que provavelmente estaria estudando também, na mesma área que a própria. Após mandar o texto, obteve uma confirmação, e foi avisado do perigo iminente dos irmãos de Arthemis. Talvez com o amigo deles, já que usara “crianças” e resolvera avisá-lo com antecedência.  Os conhecia apenas de vista, mas já ouvira histórias o suficiente e observara vez ou outra para entender que ela não estava brincando. Porém, se não se misturassem – e eles não explodissem a casa – provavelmente ficariam bem.

Dirigir até a casa de sua melhor amiga era uma viagem relativamente curta; nenhum dos dois morava longe da faculdade, apesar de em partes diferentes da cidade. A dela, é claro, era mais abastada, e uma grande residência o esperava. Ao tocar a campainha, fora atendido por um empregado, a quem cumprimentara educadamente, antes de ser direcionado ao quarto de quem estava procurando. Após algumas batidas leves na porta, adentrou o local, não contendo o pequeno sorriso ao ver a mais velha jogada na cama. – Bom dia, Arthemis. Não trouxe doces, mas se quiser arriscar dar energético pras crianças, ainda tenho alguns.

Havia uma parcial noção de quanto tempo ficou ali parada e deitada na mesma posição. Balançava lentamente os pés pendurados na cama, e de vez em quando rolava para o lado. Talvez devesse tirar o pijama e colocar uma roupa simples, mas não estava indecente para sua visita, embora fosse um rapaz. Mas é Rin. Sorriu, abafando uma risada contida para si mesma. Considerava o mais novo próximo o suficiente para não ter vergonha de ficar vestida daquela forma na frente dele – com uma camisa cinza em detalhes cor de rosa, e um short do mesmo estilo, que não era tão curto para que fosse julgado por exibir demais. Ouviu as batidas na porta, esperando já quem entrara por conta própria. Sentou-se na cama, acenando com uma das mãos e um sorriso amigável, sem se lembrar que provavelmente, estaria com as madeixas brancas emboladas por ter rolado na cama. Fazia tempo que não estudava de noite com alguém e aquilo seria bastante produtivo para os dois.

— Mas está de noite, Rin. — Respondeu, não entendendo o sarcasmo alheio no “Bom dia”. Riu, negando com a cabeça a dica dada pelo outro. — Se tomarem energético, vão quebrar a casa toda. Pode tirar os sapatos se quiser e deixar ali mesmo, e os seus cadernos ali. — Apontou primeiro o canto atrás da porta e em seguida, sua escrivaninha que tinha seus livros e cadernos, com algumas pastas também. Tudo perfeitamente organizado, assim como todo o resto do seu quarto. Não saíra da cama, permanecendo sentada e esperando que Rin se acomodasse melhor depois de chegar, para decidirem o que fariam primeiro. — Prefere começar agora ou quer comer algo? Posso fazer um café para ajudar a afastar o sono. Eu não posso muito com energéticos... E café é mais gostoso, também. — Sugeriu, sabendo que Rin também gostava da bebida oferecida e não demorariam muito tempo fazendo.

Piscou lentamente ao ouvir a resposta a seu comentário, constatando que Arthemis não havia entendido a intenção. Sabia que o próprio sarcasmo normalmente – e intencionalmente usado desta forma – não era captado com facilidade. Só esquecera com quem estava lidando. Decidindo por não explicar, apenas meneou a cabeça em confirmação, um pequeno sorriso em sua face, enquanto fazia o que fora dito e ouvia o resto das palavras alheias. Compartilhavam vários traços parecidos, um sendo a impecável organização que encontrara no quarto, e que não atrapalhou ao tirar os sapatos, retirar os cadernos da mochila e deixar a mesma em um local em que não atrapalhasse a harmonia geral dos objetos.

A ideia de café era tentadora, mesmo que não fosse fazer muito para deixa-lo acordado; mas isto já seria resolvido com o fato de ter uma companhia. – Café, então. E algo pra comer logo, pra não precisarmos parar de estudar por fome. Mas antes... – Finalmente parara ao lado dela, com um objeto que havia achado em cima da penteadeira arrumada do local. Sentando-se de lado na beira da cama de Arthemis, com os dois braços virou-a de leve, de modo que a parte extremamente embraçada do cabelo fosse exposta a si. Com a escova que agora segurava, começou a pentear os nós com algo entre delicadeza e firmeza, como fazia normalmente em seu trabalho de meio período. A albina normalmente cuidava da aparência, e Rin não podia culpa-la por não fazê-lo a esta hora da noite em sua própria casa, no entanto, bagunça era algo que o incomodava, onde quer que fosse. E naquele caso, havia um modo rápido e prático de cuidar dela.  

Imaginava que as crianças da casa também gostariam de tomar café, já que haviam pegado o costume dela. Mas seria um problema deixá-los mais agitados naquele horário e da mesma forma, não conseguiriam chegar até a cozinha sem que pelo menos um dos três ficasse sabendo. De toda forma, qualquer coisa era só tapeá-los durante o tempo necessário para que voltassem ao seu quarto e trancassem a porta. Embora seus irmãos soubessem como destrancar com grampos ou alfinetes.

Permaneceu pensativa daquele mesmo jeito, até sentir Rin virá-la pelos ombros de costas para ele. Sentiu a parte de trás de seu cabelo ser penteada, finalmente caindo a ficha de que estava deitada anteriormente e, por ter rolado algumas vezes, provavelmente seu cabelo deveria estar um “mini-caos” atrás. Abafou uma risada, sentindo-se na sorte já que sabia do trabalho de meio-período do rapaz.

— Obrigada, Rin. Descuido meu. Ele anda meio quebrado, por sinal. Não repare. — Disse de maneira agradável, enquanto esperava o rapaz terminar de pentear os fios brancos. Ondulados e o máximo do que poderia se chamar de “cabelo claro”. Não era o melhor tipo de cabelo e a garota tinha um cuidado diário para que não ficasse parecendo uma bruxa da Idade Média. Mas, a opinião de um cabeleireiro era sempre válida. — Acho que tem bolo na geladeira. Gosta de chocolate? — Perguntou, assim que o outro acabara o que fazia. Levantou-se, passando os dedos sobre os fios recentemente arrumados e aprovando o resultado. Fez um sinal com a cabeça para que fosse seguida, saindo do quarto e andando pelo longo corredor até descer a escadaria para o hall, onde havia a passagem para a cozinha principal. Morar num lugar tão grande às vezes era um pouco problemático. Principalmente quando precisava caçar um de seus irmãos no meio de uma briga entre eles mesmos. Mas de resto, era agradável ter tanto espaço. Seus pais estavam em uma viagem de negócios, mas já conheciam seu colega e mesmo que estivessem presentes, não fariam nada além de cumprimentá-lo.

Chegando até a cozinha, suspirou aliviada por não ter encontrado nenhum dos mais novos no caminho. Imaginou quanto tempo durariam até que algum deles aparecesse.

Não lembrava ao certo quem foi que convidou Heike pra passar a noite em sua casa, mas como isso acontecia sempre, já havia aprendido a parar de se importar com aquele detalhe. Alguns dos empregados conseguiram convencer os três a se trancarem no quarto dele pra que jogassem vídeo game. Como não tinham mais muita coisa pra fazer, os três concordaram e agora estavam os dois prodígios se combatendo virtualmente, até Heike resolver sair pra buscar algo pra comer enquanto não era a vez dele de jogar.

Não se lembrou exatidão com quantos rounds os dois começaram a discutir sobre quem estava na frente e antes que resolvessem rolar no chão, Harold que estava de costas, só conseguiu ver um chinelo passar rente ao seu ouvido e parar na cara de Zion. Só viu o garoto se espatifar ao chão para então começar a rir e largar o controle na cama. Continuou rindo, até resolver deitar e pendurar a cabeça na cama, vendo Heike de cabeça pra baixo.

Ah, tinham visitas? Arthemis normalmente nunca chamava alguém pra dormir com ela. Era raro até mesmo entre as amigas da garota. Mas conhecia o dito fulano de algumas vezes que ele surgia no local, só que em horários mais agradáveis. Provavelmente não estavam juntos e se estivessem... Não, não estavam, só. Certo que aquele era o amigo mais próximo que a irmã tinha da faculdade. E que não seria estranho, para ocasiões normais, ela tentar arrumar um namorado que fosse da mesma área que ela, tendo mais contato. O albino sentou novamente na cama, lembrando-se de todas – poucas – as roupas realmente curtas que Arthemis tinha. A garota não se vestia de forma indecente nem perto deles, quanto mais perto de alguém da idade dela e sem nenhum laço tão próximo assim. Aquilo estava estranho.

— Certo, o jogo estava chato mesmo. Eu não sei vocês... — Deitou-se novamente, empurrando o corpo para trás e dando uma cambalhota simples, até alcançar o chão e se erguer. — ... Mas ao menos pra mim, vai ser mais divertido atazanar os mais velhos. — Sorriu para os dois, da forma como sempre sorria quando tinha a ideia de apurrinhar a vida da irmã. Não sabia se aquilo seria suficiente para convencer os outros dois, mas sabia que Zion e sua fissura pela maior não o deixaria quieto. E sempre que o mais novo resolvia surtar pela albina, Heike se estressava de alguma forma. Era como estressar três pessoas de uma vez só e ainda tinha o brinde chamado “o amigo esquisito da Arthemis, que parece uma menina”. Como poderia ficar sentado jogando videogame com uma situação daquelas em mãos?

Tinha certeza que estava ganhando e que Harold havia começado a roubar na contagem dos rounds só porque estava distraído ocupado demais matando-o. E foi assim que começou a discussão com o irmão. Gostava de jogar, mas gostava mais ainda de arrumar encrenca com o irmão e o amigo intruso que aparecia lá sempre e que sempre o fazia perder parte do espaço da cama. Era sempre mais divertido e legal jogar na vida real. Pra que bater no irmão com um personagem numa tela se podia fazer isso normalmente?

Entretanto a pseudo briga fora parada quando um chinelo voador acertou-lhe a cara, fazendo seu óculos cair e Harold se separar. Reolou em busca dos óculos, mas a notícia lhe deixou mais chocado, fazendo-o por o objeto todo torto na cara. — QUÊ? — Ainda não conseguia saber ao certo se conseguia ouvir direito ou não as informações e no fim, sempre acabava falando mais alto para os outros. Sua surdez estava começando a ser superada graças aos aparelhos, mas ainda não era algo que havia se acostumado.

Quando percebeu que a informação da irmã era real, não pode deixar de fechar a cara, rolando na cama e se sentando na ponta da mesma com os braços cruzados, ouvindo atentamente os planos do albino. Concordava completamente com ele, mas só queria fazer aquilo pra poder tomar conta de Arthemis. Ela não podia ficar com um garoto de noite, mesmo que ele fosse aquele loiro afeminado, ainda mais vestindo roupas curtas.

— Vam lá, tamô esperan o quê? — Respondeu, levantando-se da cama e dando um tapa na cabeça de Harold, para em seguida fazer o mesmo na cabeça de Heike, pondo-se a correr para fora do quarto em seguida. Não podia esperar parado, ia encher o saco de quem fosse o abusado a se enfiar na sua casa pra ficar perto de sua irmã.

Dera alguns conselhos sobre a manutenção própria para cabelos que nem o de Arthemis enquanto o escovava. Apesar dela cuidar relativamente bem dos fios brancos, o olho crítico de Rin nunca era algo que devesse ser ignorado. Gostava de mexer no cabelo longo, mesmo que particularmente preferisse estilos menores em comprimento, por praticidade e facilidade de cuidar. Assim que terminou a tarefa, concordou com a cabeça em resposta à pergunta, devolvendo a escova para onde a encontrara e segindo a albina porta afora até a cozinha, admirando-se, como sempre, com o quanto precisavam andar para fazê-lo; era o costume de ter um apartamento pequeno desde que passara a morar sozinho, e até antes, uma casa de tamanho moderado.

Não acharam nenhuma das crianças no caminho, no entanto, assim que adentraram a cozinha, uma silhueta menor saiu de dentro da dispensa, como se fosse falar algo, antes de abruptamente se calar. Heike, a quem o nome lhe fora informado uma vez, um dos amigos dos irmãos de Arthemis, que estranhamente sempre estava por la quando Rin a visitava. E ele os encarava de uma forma que, assim que o viu sair da cozinha, fez o loiro virar-se para a albina, o sorriso levemente mais alarmado. – Se não tiver problema, é melhor fazermos o café rápido, pegarmos o bolo e irmos pro seu quarto logo.  – Apenas ouvia sobre coisas que aquelas crianças faziam, nunca as tendo presenciado diretamente, mas não tinha tanta certeza se os deixariam estudando em paz. Ao ouvir passos longínquos descendo alguma escadaria, apenas meneou a cabeça em direção à porta, como se para confirmar a importância de sua sugestão.  

Se não encontraram ninguém no caminho, é claro que não seria muito grande a sua surpresa se um deles estivesse na cozinha. E assim, encontraram Heike recolhendo uma grande quantidade de guloseimas e biscoitos. Aquela não era uma visão estranha para si, já que havia se acostumado com o menor remexendo na cozinha e em outros lugares da moradia, como se ele fosse mais um de seus irmãos menores. Não desconsiderando essa impressão, a maior considerava o amigo e seus irmãos praticamente como parte da família. Os dois não faziam amizades na escola tão facilmente e de tempos em tempos, Luba e Easley recebiam reclamações de professores e diretores sobre o comportamento deles. Eram meninos difíceis e embora Heike fosse idêntico no mesmo quesito, ao menos tinham mais alguém.

Arthemis sorriu ao ver o olhar que a criança direcionara para si e para Rin, assim que foram percebidos. Seguiu Heike com o olhar curioso, querendo perguntar exatamente o porque daquele ar sério que vinha dele, mas antes que pudesse, ele havia saído de suas vistas como um gato apreensivo. Inclusive, esquecendo toda a comida que estava recolhendo, na cozinha. Arthemis suspirou, sabendo que aquilo não poderia significar boa coisa. Acatou ao conselho de Rin, começando a preparar o café, não tão despreocupadamente como antes estava. Mas era um processo que, pelas leis da física, ela não poderia fazer muita coisa para acelerar. Apontou pelo menos a geladeira, para que Rin pudesse pegar o bolo e abriu um dos armários por cima da pia, pegando alguns pratos de sobremesa e talheres. Entregou-os ao loiro e não demoraria mais que cinco minutos para terminar o bendito café. Por enquanto, as coisas estavam correndo de acordo. Mas sabia que seria muita sorte se eles conseguissem fugir há tempo.