O máximo de expressão de dor que fez, foi levantar uma sobrancelha por um momento, seguindo com o cenho franzido, pela bagunça resultante de seu sangue e seu reflexo. Quase fez o favor de raspar o pé machucado nos cacos de vidro, quando Rin começara a varrer para longe e pedira para que ele se sentasse de lado na cadeira. Assim o fez, olhando-o ajeitar a bagunça que Harold e Nietzsche fizeram, assim como tirava Albinoni – que começava a miar finalmente, bem alto por sinal. Ora, antes o rabo do que a cabeça. Pensou consigo mesmo, ao ter o pé tratado pelo aspirante a médico. O maior já havia tido ferimentos extremamente mais graves do que aquilo, com curativos bem mais porcos do que estava tendo. O mais velho era realmente caprichoso, tanto quanto Arthemis era. Dava para ver que ambos levavam jeito com a coisa, ... Embora ele esteja meio puto. Sorriu, percebendo que não deixou o rapaz nada contente. Não sabia se era por ter ferrado com parte da louça, ou se era por ter pisoteado um de seus gatos, mas ao contrário de 90% das besteiras que Harold fazia, aquela fora completamente acidental. Mas não pretendia se desculpar ou pedir para que o menor tivesse alguma “clemência”. Gostava de ver o rosto alheio menos tranquilo do que era de seu costume. Lhe proporcionava uma alegria quase única.
Procurava ignorar a pequena ardência que o machucado lhe proporcionava ao pisar no chão, mas não tirava sua capacidade de caminhar. De toda forma, agora ao menos, tinha uma justificativa bem mais plausível para aceitar a carona do mais velho do que simplesmente “Por que não?”. Levantara-se normalmente, como se não estivesse machucado, preferindo tentar ignorar a existência da ferida do que esperar que ela doesse a cada movimento. Eram apenas alguns arranhões, então aquilo não era justificativa para não ajudar a limpar a bagunça que ele mesmo fez. Lembrou-se que dever favores não lhe agradava tanto. E já estava devendo alguns muitos para Rin.
— Relaxe. Aconselharia até você deixar uma parte pra ela terminar o serviço. — Debochou, enquanto derramava um pouco de desinfetante no chão – que pegara de onde o menor indicou quando pediu. O sangue havia apenas borrado o piso, então não foi preciso muito mais do que um pano de chão para limpar as marcas da violência. Feito isso, apressou-se em procurar os sapatos, por sorte já estando secos – visto que o material demorava bem mais para secar do que tecido de roupas. Verificou se não havia mais nada para recolher fora o paletó e a carteira – e o celular quebrado – indo na frente pelo corredor e esperando o elevador enquanto Rin fechava a porta do apartamento, deixando os gatos que voltaram ao silêncio.
O pé machucado estava ligeiramente incomodado dentro do sapato social, o que fez Harold agradecer mentalmente a Rin pela carona, mais uma vez. Andar descalço era mais fácil e não poderia sair sem sapatos pela rua. Até poderia, se eu quisesse foder mais ainda o meu pé. Porém, não guardava nenhum rancor do gato. Pisoteou o bicho primeiro e foi arranhado por instinto. Os gatos de Rin eram bem sossegados e de alguma forma, constatava ali a tese de que os animais se parecem com seus donos. Será que levaria um soco de Rin se agredisse ele? Qualquer dia faria Heike de cobaia.
Já no carro, o mesmo silêncio desde que saíram do apartamento ainda se estacionava. Harold sentou-se no banco ao lado do motorista, assim que o loiro destrancara as portas do carro. Estava relativamente uma manhã fria, então o albino vestia o paletó, deixando a gravata largada no bolso da calça. Não precisaria explicar o caminho para sua moradia, visto pelas milhões e milhões de vezes que Rin ia até ao local para visitar a amiga. Mais uma vez, o silêncio se arrastava, exceto quando o mais novo resolvia reclamar de qualquer coisa que via pela rua, mesmo que não esperasse resposta ou mesmo uma conversa. Alguns minutos de viagem e já dava pra ver a fachada da mansão dos Wilhelm, logo depois que passaram por mais alguns casarões do bairro. Preferiu ser deixado próximo ao portão principal, especificando isso ao mais velho.
— Se quiser, posso chamar a Arthemis. Já deve estar acordada, pela hora. — Não era tarde, mas a mais velha sempre acordava cedo, só Deus sabia porquê. A mão que estava próxima a porta destravou-a e Harold fez como se fosse sair do carro, mas parou antes disso. Como se tivesse tido um lampejo súbito, virou-se para Rin novamente, olhando-o. — Ah, é. Eu esqueci de te agradecer. — Disse baixo, mais como se fosse um lembrete para si mesmo do que para o loiro. Inclinou o corpo até alcançar o banco do motorista, que Rin estava. Talvez por ter sido muito de repente, não precisou prensá-lo contra a outra porta e nem mesmo segurá-lo. Tampouco abusou tanto quanto fez da última vez. Aquilo fazia mais o tipo do menor, deduziu. Roçou os lábios entreabertos aos de Rin, vagarosamente. Ainda dava para sentir o leve gosto do café, mas antes que o outro pudesse reagir de qualquer forma, afastou-se ainda com a mesma expressão com que se aproximara.
— Bom começo de dia, Rin. Até. — Finalmente, saiu do carro, fechou a porta e fez o reconhecimento por voz do porteiro eletrônico, ouvindo o som da destrava do portão. Assim que pisou dentro da propriedade que se iniciava com um enorme jardim, não pode conter mais e abriu o costumeiro sorriso debochado, grande e satisfeito o suficiente para exibir os dentes quase com selvageria. Estava de costas, então o menor não iria ver. Que você tenha um belo dia de trabalho, heh.